Jards Macalé falece aos 82 anos e deixa um legado imenso para a música brasileira

Jards Macalé sempre foi desses artistas que não passam pela música — atravessam. Não se acomodam a ela, não a tratam como paisagem, mas como revolução. Hoje, ao nos despedirmos dessa figura monumental, revisitar sua história é como abrir um mapa onde cada canto aponta para um gesto de liberdade, ousadia e invenção.


Filho de uma pianista e de um acordeonista, cresceu embalado por valsas, sambas e jazz. Ainda menino, já entendia que música não era só harmonia, era também respiração. E foi respirando arte que descobriu mestres como Guerra-Peixe e Esther Scliar, que o lapidaram tecnicamente sem jamais podar o que ele tinha de mais precioso: insubordinação criativa.


Nos anos 60, enquanto o país mergulhava na contradição entre sonho e repressão, Macalé surgia com uma voz que incomodava — e fascinava. Em 1969, com “Gotham City”, ele mostrou que podia transformar palco em manifesto, que podia cantar a escuridão com luz própria. Ali já nascia o Macalé que conhecemos: contestador, inquieto, visceral.


Sua obra é um território onde gêneros se encontram sem pedir licença. O álbum Jards Macalé (1972) é prova disso: samba, rock, bossa, psicodelia e silêncios milimetricamente posicionados. Já em Aprender a Nadar (1974), sua música virou abrigo para resistir à censura, aos medos e às noites duras que marcaram o país. A ditadura tentou impor silêncio. Ele respondeu com poesia.


E como esquecer suas parcerias? Waly Salomão, Capinam, Torquato Neto. Nomes que também ressignificaram a palavra no Brasil e que, com Macalé, criaram canções eternas como Vapor Barato, Mal Secreto e Rua Real Grandeza. Obras revisitadas por gerações, da MPB clássica à nova música brasileira — provando que Macalé é sempre atual.


Mesmo com o passar do tempo, sua chama nunca se apagou. Pelo contrário. Em Besta Fera, já em fase tardia da carreira, ele mostrou que a juventude é um estado de espírito e que seu espírito jamais se curvou. E quando seus passos cruzaram o audiovisual, com o documentário Um Morcego na Porta Principal, ficou ainda mais claro: Macalé não era só músico. Era atmosfera.


Hoje, seu nome aparece em capas de livros, artigos, estudos acadêmicos, e ainda assim parece pouco para abarcar sua importância. Macalé é desses artistas que não couberam no sistema, não couberam no gênero, não couberam na época. Ele se reinventou tantas vezes que virou escola. Escola da liberdade. Escola da não conformidade. Escola do sentir antes de enquadrar.


Sua partida dói — mas sua obra consola. Ele nos deixou canções que desafiam, acolhem, provocam e libertam. E se despedir de Macalé é difícil, celebrar sua obra é urgente. Porque cada vez que o Brasil precisa respirar, é na música de artistas como ele que encontramos ar.

Foto: reprodução 

Texto: Noé Pires/ @noepiress 

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